terça-feira, 19 de outubro de 2010

Contrarrevolucionário - Parte I

Acordei em um apartamento desconhecido. A única coisa familiar que havia por ali era o pôster do Che me olhando da parede. O cinzeiro cheio ao meu lado exalava ainda o alcatrão da noite passada. As várias garrafas vazias denunciavam a razão do terrível mal-estar que me assolava. A luz chegava aos meus olhos como lâminas e a minha vontade era não sair daquela sala, nem sequer me levantar do chão. Ainda assim, decidi descobrir onde estava, e como chegara ali.

Fui até o quarto e identifiquei alguns rostos nos corpos que se amontoavam em colchões mal arranjados. Ninguém relevante. Alguns flashes me voltaram da noite anterior e fui forçado a me perguntar por que dormira sozinho na sala, e não com os outros no quarto. Isso ainda era uma incógnita. Retornei à sala.

Avistei uma poltrona com furos de cigarro mas que ainda aparentava ser muito confortável. Lembrava algo como a poltrona em que meu avô se sentava enquanto me contava as histórias da guerrilha da qual havia participado na época do regime militar. Com gestos largos, típicos do gringo que era, me exaltava a luta, exaltava a revolução socialista que um dia ainda haveria de ser feita no Brasil e da qual eu participaria para seu orgulho.

Che me olhou com reprovação. Não sei se era ele ou meu avô que me olhava daquele quadro tortamente pendurado naquela parede cinza e decadente. A reprovação surgia do fato de que a revolução não seria feita, e se fosse eu não seria parte dela. Sorte que meu avô não estava mais aqui para partilhar esse desgosto comigo.

Fui até a cozinha, abri a geladeira. Nada. Uma garrafa de vinho ruim, aberta, com aparência de velha era a única coisa que sobrara naquele assoalho pálido. Juntei a garrafa e fui até o cinzeiro procurar algum cigarro apagado prematuramente. Me sentei por ali de novo.

Admirava o quadro como quem admirava uma existência metafísica. Ali estava o mundo reformulado que a cada gole de vinho se tornava mais vívido. As esquinas tomadas pelo povo, as armas em punho, eu no meio da multidão gritando discursos incitantes com um alto-falante disponibilizado por um sindicato que havia aderido à luta. Viajei longe.

Voltei pro apartamento triste. Nenhum cigarro do cinzeiro estava em condições e o olhar fixo do meu avô, pendurado na parede me afligia cada vez mais. Fui até ao quarto e revirei os bolsos daqueles que estavam vestidos. Achei uma carteira de cigarros e quando reparei na cômoda ao lado da cama, percebi algumas trouxas de cocaína. Juntei-as.

Chegando à sala com o vinho já pela metade, estiquei algumas linhas no vidro quebrado de uma mesa velha. Uma, duas, três seguidas. Estava com fome e não havia nada além do vinho por ali. Olhei minha carteira: vazia.

Agora já um pouco mais desperto, reparei no velho toca-discos que parecia decepcionado de estar ali, desapercebido, a algum tempo. A agulha gasta ainda fazia seu papel. Olhei a coleção de discos empoeirada que havia ali em baixo. Led Zeppelin destoava da jovem guarda. Algo de música clássica. Chico Buarque. Botei um velho disco do Raul.

Mais alguns goles de vinho, mais algumas linhas e eu me sentia fraco. Não só fisicamente. Reconhecia pela primeira vez, no quadro da parede, a minha fraqueza. A minha irrelevância e a leveza inerente a tudo isso. Flutuei por alguns instantes naquela sala fria, fechei os olhos e não sei precisar se morri ou se desmaiei.

Sei que quando abri os olhos, lá estavam eles, os dois, conversando cada um na sua poltrona...

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